Os velhos tempos
por Jorge C Ferreira
Gosto das ruas estreitas, das travessas, das sinuosas canadas do Corvo. Das ruas de fugir aos piratas das ilhas gregas. Gosto dos pequenos espaços onde todos nos conhecemos. Gosto de ser vida de outras vidas. Estar lado a lado com os que caminham comigo. Conheci ruas de muitos modos de andar. Ruas que percorri em passo lento e acelerado, onde corri e suei, onde passeei de mão dada e namorei. Onde me sentei cansado de correr. Onde roubei e me roubaram beijos.
Também gosto das Avenidas. Das Avenidas grandes onde desfila a liberdade. Tenho saudades das manifestações espontâneas. Um tempo que nos vem à memória em dias e noites de nostalgia. Tudo podia acontecer a qualquer momento, não havia hora marcada para a rebeldia. O medo tinha sido vencido. Os malvados acobardados andavam escondidos. As mulheres, nossas companheiras de sempre, marchavam connosco.
Gosto das escadinhas do bairro onde nasci. Dos patamares onde se jogava à bola. De as subir ou descer a fugir à polícia. Das atribuladas aventuras. Das portas que se abriam nos escondermos. Das descidas alucinantes. Das rápidas subidas que, para mim, começam a ser impossíveis agora.
Amávamos a Alameda D. Afonso Henriques. O seu relvado que pedia uma futebolada, por vezes a bola aparecia e nós não resistíamos. Era certo que acabava tudo a fugir à polícia. O botas proibia a fruição de tudo o que dava prazer. No verão sabia bem ir até junto da fonte luminosa. Sabiam bem os salpicos de água que, por vezes nos refrescavam. Sentarmo-nos com os pés descalços dentro de água era maravilhoso, arriscar entrar na água também era mais do que proibido. As coimas que os pais tinham de ir pagar à esquadra para nos ir buscar e o ralhete ou o tabefe que nos esperava em casa inibiam-nos, muitas vezes, de arriscar. Tão diferentes esses tempos dos tempos de agora.
As noites de verão na rua. Sentados na soleira das portas. Jogar à palmadinha com os bonecos da bola. Havia sempre alguém atento aos nossos movimentos. A vizinhança solidária. O guarda-nocturno entrava de serviço e as Mães começavam a chamar-nos para casa. Tinha chegado a hora de recolher. (Não gosto de pronunciar esta palavra, faz-me lembrar a tropa.)
Nunca é demais falar da minha escola primária. A escola n.º 14 no Largo do Leão. Ao lado da escola os bombeiros da Cruz de Malta. Meia dúzia de prédios acima o sítio onde nasci.
«Vai sempre pelo passeio.» Dizia a minha Mãe todos os dias. Acho que só no primeiro dia me acompanhou. Depois lá ia eu de bata branca feita pelas suas saudosas mãos e uma mala de cartão com os livros, os cadernos e o estojo dos lápis e canetas de madeira e aparos.
As primeiras letras, os primeiros números. Eu, que já sabia ler e contar, levava algum avanço. Os cadernos de duas linhas. O tinteiro no centro do cimo do tampo da carteira. O companheiro de carteira. A solidariedade.
Os jardins da minha vida. O jardim Constantino onde o meu pai me levava para andar de triciclo e muito mais tarde o Jardim de Cesário Verde onde fiz amizades que ainda hoje se mantêm. Já era um rapazito. O meu círculo de liberdade ia aumentando. Novas aventuras iam sendo pensadas e algumas concretizadas.
Depois foi a vida até aqui.
«Como tu gostas de lembrar essas coisas. Dás sempre uma volta diferente à coisa. Gosto de ouvir.»
Fala de Isaurinda.
«O que fomos vive connosco. Faz parte do que somos. Por isso gosto de lembrar estas coisas.»
Respondo.
«Tens de me contar mais coisas. Mas há coisas que não contas, eu sei.»
De novo Isaurinda e vai, uma gargalhada a fugir-lhe do corpo.»
Jorge C Ferreira Julho/2023(404)
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Diz o povo … mais vale tarde que nunca!
Um milhão de perdões, por só agora “responder” à tua fabulosa crónica, mas há momentos, minutos ou relâmpagos de vida, que nos atraiçoam e “vedam” o nosso caminhar livre.
Falei em Liberdade … e olho o teu magnífico traço, onde retratas via palavras sentires e momentos que nos escrevem as páginas do nosso crescer.
Como sempre, os lados, as esquinas, as ruas, os jardins … são mapas perfeitos do teu viver … melhor do teu sentir, entre compassos lentos ou loucuras de beijos apaixonados.
Envolvente e bem apelativo as realizações conclusivas dos teus calendários, que retratas “por aqui”, fazendo ou tecendo vitaminas do teu orgulho, e quase questionando em interrogações ousadas – Viram, viveram e não dizem nada?
Ainda bem que o escreves no presente do teu indicativo, voltar de páginas do teu estar e viver , que em bons momentos já me comparei e sorri escrevendo sem aparo ou papel sóis do meu vivenciar .
Um grande abraço, amigo que muito estimo e admiro!
Obrigado José Luís. Poeta. Que reconfortante ler o teu excelente comentário. Os nossos caminhos de uma vida. Os lugares que nos marcam. Vida que vai passando por nós. Muito grato pela tua presença, sempre a tempo. Abraço forte
O menino que cresceu a guardar memórias. Algumas já escritas. Cedo iniciaste o percurso. Crónica muito especial que despertou as minhas em locais muito perto dos teus. Somos como museus vivos. O futuro é hoje também ele cheio de vida. Adorei o comentário da Isaurinda. Abraço meu Amigo. Sempre!
Obrigado Regina. Sim, somos um repositório das nossas memórias. Somos também o momento que vivemos. Somos a terra a girar. Grato por estares aqui. Abraço grande
Felizes os que têm o privilégio de recordar. Ter memória é uma benção. É viver! Tantas e tão belas recordações tem, para ultrapassar essas noites mais nostálgicas, que ás vezes teimam em ficar connosco. Lembrar as ruas estreitas que tanto gosta, aonde caminhou e algumas vezes se cansou, outras deu e recebeu beijos
Com o esquecer as avenidas, em que desfilou a Liberdade!
Lembrar a sua meninice, é tão bom.. Sinal que os pais cuidaram dela com o maior desvelo, para que ficasse tão presente em si. “ Seu menino traquinas.” Que já sabia ler e escrever quando foi para a escola, de bata branca feita por sua mãe. Gosto do modo como fala da escola, um lugar de paixão . De certeza o seu pequenino coração, já lhe dizia: que escrever é uma Arte. Foi bom escutá-lo, para hoje nos deliciar com tão belas histórias de verdade.
Não adivinha a emoção que senti a ler o seu texto. É que também fui pequenina, só que um bocadinho menos traquina.
Está adorável o que escreveu, meu poeta. E eu, gostei muito. Abraço imenso.
Obrigado Maria Luiza. Lindo o que escreveu. Aprendi a ler com o velho Diário de Notícias, que todas as manhãs estava à porta de casa. A escola foi outra aventura. As famílias eram grandes e havia alguém pronto a ensinar o mundo e a vida. As brincadeiras eram a luz que nos iluminava. A minha gratidão. Abraço enorme.
e lá vamos nós..
numa corrida desenfreada até aos verdes anos.
como gosto de vaguear o meu olhar pelas costuras da tua meninice.
espreito pelo buraco da fechadura.
até ao passado.
num instante de magia estou nas ruas que calcorreaste, na escola do muito que aprendeste, nos pátios dos jogos de rua, nos jardins da tua vida, nas escadinhas do pontapé na bola e na fonte para refrescar
os descalços pés nos dias rubros de calor.
não me distraio.
sigo-te pelas ruas do corre-corre, do beijo trocado, dos dedos enleados, sigo-te pelas avenidas grandes dos êxtases então já libertos e pelas demais aventuras com que nos alicias e cativas.
e lá vou eu, também.
dar uma volta ao que ficou para trás. longe.
é tempo de tornar à terra onde aprendi a ser feliz.
de África ficaram as raízes, os frutos, as estrelas, o mar pardacento, as gentes com um coração gigante, a terra com cheiro a chuva e a lama,
a cacimba, a lentidão das osgas e as orações dos louva-a-deus.
as descobertas e as saudades.
as de um amor que vivi em demasia e que nunca mais esquecerei. o da família.
vês?
é tão gratificante quanto ditosamente
inaudito e surpreendedor seguir-te de perto nessas tuas longas viagens do coração.
obrigada, meu cronista amigo.
Obrigado Mena. É tão gratificante ler as maravilhas que escreves a comentar estas crónicas que vos dou. Verdes Anos e veio-me à memória esse filme que inaugurou o novo cinema português. A bela música de Carlos Paredes. O resto são flashes que me surpreendem nas esquinas da vida. A minha enorme gratidão. Abraço grande
Lembranças que vivem connosco. Memórias que fazem parte de nós e que, sem elas, seriamos certamente diferentes do que somos.
Muito do que fizemos já não conseguimos fazer mas o que importa é termos feito, mesmo (e principalmente) incluindo o que não fizemos certo. Porque mais vale ter feito do que ficarmos com a saudade do “não feito”.
Penso que as memórias enriquecem o presente e que o modo como as guardamos podem iluminar (ou não…) a ideia que temos de futuro.
Um abraço pela escrita e pelas memórias que desencadeou.
Obrigado Maria. Sim, minha Amiga. Somos a soma das experiências feitas e inventadas. A memória é uma dádiva imensa. O que nos marcou versus o que nos marca. Assim vamos caminhando. A vida vai ao nosso lado. Que bom o que escreveste. Muito grato. Abraço grande
Uma crónica de memórias de um tempo situado na sua infância. De espaços e lugares ( temática recorrente no autor) e movimentos que se inscrevem no indivíduo. Matérias e objectos a desvelarem uma vida que se iniciava, se num tempo castrador, num espaço que impelia à libertação e liberdade. Palavras sensações e palavras sentimentos de uma construção identitária emergente. São memórias carne num corpo que retrospectivamente as revela e nos transporta imagética e mentalmente para esse outro tempo em que o homem germinava.
Há, como sempre) neste escrito, subtilmente, a procura de si. As raízes da construção de um eu que se mostra e desnuda num universo de compreensão alter que resgata a unicidade dita ao outro.
Serenidade e calma ( aparentes?!) num texto de fragmentos mnésicos reveladoŕes de um homem a construir-se, já denotando a inquietude que o acompanharia. Constituindo-se marca nos seus escritos.Quanta vida nesta vida.
Permita-me inverter: vivemos o que fomos.
A melancolia e a saudade de conteúdos existenciais na emergência da essência de um ser na sua unicidade vivida. E a viver. Outras memórias se estão a constituir. Outros textos almejamos.
Obrigado Isabel. Sempre brilhantes os seus comentários. Texto que denotam uma leitura apurada até o que o autor tenta esconder. É tão gratificante ler tudo o que escreveu. Somos a soma de tudo o que vivemos. O que viveremos mais? A minha imensa gratidão. Abraço forte
Estórias de menino que deram ao homem histórias para contar. Como Miguel Torga escreveu num dos seus poemas há no percurso de vida de cada um de nós, um jardim, uma velha infância…
Se assim não fosse, como seriam aborrecidos os nossos dias, que foram e que são o patrimonial da memória. Como tudo na vida existe os dias menos claro,e outros nublados, faz sentido o bom e o mau, cabe-nos a nós a escolha dessas histórias
Como sempre meu amigo trovador de palavras, estórias e histórias, envio um abraço contando que faça parte das tuas muitas estórias. Os amigos também se contam não como história,mas, com afectos e carinho, levamos cada um deles para a nossa estória. Abraço!
Obrigado Cecília. Que bonito! Que seríamos nós sem as nossas memórias. É aí que fundamos tudo o que somos. Sim, também o carinho e a ternura e a nossa vontade de lembrar. Amiga, minha Amiga a minha gratidão. Abraço grande
Querido amigo… temos afinal saudades da nossa infância, dos primeiros amigos,do brincar na rua… tenho eu, saudades do tempo em que havia pai e mãe e irmãos a chamarem por nós.
Como entendo bem…o primeiro beijo roubado ou não…levá-los a um tempo que não volta mais e em que o futuro parecia infinito…
Diga por mim à Isaurinda que um dia … talvez amanhã, lhe conta tudo que ainda não contou…
Um abraço e obrigada por mais esta viagem que me diz tanto…no lugar onde estou e me traz tanto do mesmo em emoções e sentimentos já idos, mas que deixaram marcas, algumas cicatrizes e muitas tatuagens no peito.🌼🌼🌼
Crónica maravilhosa. Bela viagem pelos caminhos da vida. Regresso ao tempo em que vivendo numa realidade diferente, tanto tinha de igual a uma grande cidade. A escola. Batas brancas. Manuais escolares iguais em todas as escolas do país. Brincadeiras de recreio. Mais do que isso, a liberdade de fazer da rua a nossa casa, onde se estava sem medo nem preocupação. Tempos tão distantes. Adolescente com os sonhos próprios da idade. A descoberta da grande cidade, As Avenidas Novas. A mudança que se sentia no ar. Ânsia de liberdade.
Outros tempos, meu Amigo, em que a idade e a saúde tudo nos permitia. A vida que fez de nós o que somos hoje.
Grata porestar desse lado,
Grande abraço.
Obrigado Eulália. Tempos em que se fazia sentir a falta de liberdade. As escolas de ensinar. Algumas coisas que depois vimos não serem correctas. A nossa inocência. Daí viemos e fomos crescendo. Muito grato por estar neste nosso espaço. Abraço grande.
Obrigado Clara, minha querida Amiga. As memórias da nossa infância, são o melhor caminho para compreender o presente e espreitar o futuro. A Isaurinda adivinha-me. Sabe das minhas manhas como gostei do que escreveu. Muito grato. Abraço grande.
Olá meu amigo
Estas tuas memórias são semelhantes às minhas na essência e no conteúdo mas em enquadramentos diferentes (não fossemos nós nascidos pelo meio do século XX. Tu na cidade e eu numa zona mais rural do nosso litoral). À medida que vou lendo, lembro também as minhas aventuras mas de uma menina, primeiro numa aldeia com os ‘velhos’ da minha infância que sempre me acompanham e que um dia talvez vá reencontrar. Depois, a vinda para a cidade grande para continuar a estudar passando dos caminhos de terra batida, das árvores e dos seus pássaros habitantes, dos cães e gatos pelas ruas para como dizes as largas avenidas, as fugas pelos patamares das escadas pelos motivos que quem foi jovem nos anos 1970 melhor compreende e mais tanto que dizes que me dá a ideia de um passado tão perto e tão distante.
Ah! E as dificuldades hoje de ‘correr’ como outrora …
Sempre um prazer as tuas palavras😘
Obrigado minha Amiga. Olá que bom estares aqui. É tão gratificante ler o que escreves. És uma Amiga especial. És carinho em movimento. Sabes, já não sei correr. Esqueci tanta coisa. Ficou o que nos marca. O que nos vai acompanhando na vida que percorremos. A minha gratidão. Abraço forte